05
Mar08
Andar para trás
Pedro Sales
O Público foi o “meu” primeiro jornal. Melhor, foi o primeiro jornal que comprei com o meu dinheiro. Como o meu avô tinha sido revisor na Capital e no DN, a entrada do Público numa casa onde sempre se lera estes jornais foi entendida como uma traição. Mas o Público foi também isso. Uma ruptura geracional com um país fechado e provinciano que encontrava na maioria da imprensa um espelho fiel do seu atraso. Foi o primeiro jornal nacional a destacar temas como a ciência, tecnologia, educação ou a conceder o merecido destaque à política internacional. Todos os dias tinha um suplemento, regra geral de qualidade. O seu grafismo era irrepreensível e a redacção fazia uso disso para dar à luz capas arrojadas sobre temas como os avanços na descodificação do ADN, a descoberta de novas galáxias ou novos conhecimentos sobre o esqueleto de Lucy.
A rede de correspondentes, e os exclusivos internacionais a que tinha acesso pela sua ligação a jornais como o Independent ou o El Pais, fizeram a diferença na excelente cobertura da primeira guerra do Iraque ou do desmantelamento do mundo soviético. A sua opinião estava bastante acima da média, era plural e conflituante entre si. Foi com o Público, e com as tiras do Calvin e a crónica do Eduardo Prado Coelho, que adquiri um hábito que ainda hoje mantenho: ler os jornais a partir da contra-capa. Eram o primeiro momento na chegada à faculdade e, não raras vezes, o primeiro tema de conversa (ok, o segundo, depois dos Monty Phyton).
Só que, onde o país se foi modernizando, o Público regrediu. Vicente Jorge Silva saiu e o jornal nunca mais se encontrou com a sua (nova) identidade. A segunda guerra do Iraque marcou a segunda fase deste jornal, marcada pelo progressivo alinhamento e intervenção política do seu director. José Manuel Fernandes não é um jornalista que dirige um jornal, é um politico que está à frente de um jornal para fazer proselitismo ideológico. O que seria normal num projecto que tivesse nascido com esse código genético, causa estranheza no Público, que começou alinhado com jornais como o Guardian, Independent ou El Pais, e agora se vê refém de uma agenda liberal e/ou neoconservadora que não casa com a sua história. A disfuncionalidade foi-se acentuando e as vendas descendo e descendo. Desde que José Manuel Fernandes pegou no jornal, o Público perdeu um terço dos seus leitores.
Em parte porque a redacção foi sendo sucessivamente reduzida, os correspondentes há muito que se foram e os exclusivos idem aspas, aquele que foi o primeiro projecto editorial aberto ao mundo e de qualidade internacional foi-se resignando a ser mais um título no panorama da imprensa nacional. Como sobra muito pouco do jornal que se iniciou há precisamente 18 anos, o que fica são as campanhas políticas do seu director, visíveis em capas como a do “ataque à cidade mais tolerante de Israel” e editoriais com a “lágrima no canto do olho” pelo “25 de Abril de Bagdad” que iria levar a democracia a Riade. Ficaram excelentes jornalistas e alguns bons colunistas, é certo, mas o Público já não é o Público. Num gesto impensável em qualquer jornal de referência, e para provar a radicalidade do corte com o passado, até o traço mais inamovível de qualquer jornal – o cabeçalho - se foi. Ficou o toque distintivo do seu director, agora decididamente coadjuvado pela sua alma mater. O que é muito pouco para quem tanto prometeu.