PS e PSD aprovaram, na semana passada, a criação de uma
base de dados com os perfis de ADN. Se alguém ainda tinha dúvidas de que os portugueses prezam pouco a sua privacidade, e encaram com indiferença e bonomia o acesso das autoridades policiais aos seus dados mais pessoais, a forma como esta questão passou quase despercebida na comunicação social ou na blogosfera é elucidativa.
E há boas razões para preocupação, a maioria delas expressas nas intervenções do Bloco de Esquerda ou do deputado Paulo Rangel. Só o facto do
único partido que suporta o governo nesta matéria, o PSD, ter escolhido para intervir um deputado que faz a mais violenta intervenção contra a base de dados já deveria ser, por si mesmo, motivo para preocupação e estranheza.
E não faltam motivos para a inquietação. O acesso à base de dados
dispensa autorização judicial, bastando à polícia autorização do presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal. Ao contrário do que defende o
parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida,
a lei nada diz sobre a destruição do ADN de arguidos cujo processo tenha sido arquivado ou de suspeitos que entretanto foram absolvidos. Existem ficheiros distintos para os registos civil e criminal, mas, ao mesmo tempo,
é permitida a interconexão dos dados de todos os ficheiros(!). Resultado,
todos os perfis de ADN são pesquisados para efeitos de investigação criminal e podem também ser transmitidos a outros países, muitos dos quais com legislação nada recomendável.
O governo diz que os marcadores de ADN utilizados não são codificantes, não contendo, portanto, informação médica e comportamental. Mas
não divulga a lista desses marcadores antes de serem publicados em portaria, retirando a possibilidade do seu escrutínio público pela oposição e Presidente da República, e não acautela mecanismos de de prudência e acompanhamento sobre a sua evolução. Uma matéria fulcral numa área em constante evolução, como é esta, e onde os avanços científicos podem vir a fornecer “uma associação entre um marcador não codificante e uma doença ou um traço comportamental.”
O ADN é, e será cada vez mais, um precioso instrumento de investigação criminal. Mas, não só não devemos embarcar em mitos sobre a sua infalibilidade, como o acesso e tratamento dos dados deve ser regulado pela máxima transparência. Infelizmente, esta lei é marcada por demasiadas omissões e erros conceptuais numa matéria em que, como diz o CNECV, “face ao carácter sensível da informação (...) os próprios aspectos técnicos se convertem em questões éticas”.
O desenvolvimento futuro da base de dados, e da legislação que regula o seu acesso, é um dos principais problemas resultantes de um processo como este. Como recorda o parecer do Conselho Nacional, “a experiência vivida noutros países europeus, como o Reino Unido ou a França, cujas bases de dados foram inicialmente estabelecidas com finalidades criminais precisas e restritas, mostrou que essas finalidades rapidamente foram sendo alargadas.” De facto, as autoridades inglesas dispõem hoje dos perfis de ADN de 10% da população, a maioria das quais sem nenhum envolvimento em processos criminais. Há duas semanas, o Partido Liberal Democrata estabeleceu como
uma das suas principais bandeiras a destruição de todas as amostras de ADN de pessoas que tenham sido absolvidas ou cujo processo tenha sido arquivado.Convém não esquecer que, ainda há menos de um ano, o ministro da Justiça dizia que
"o objectivo é, de forma gradual, inserir toda a população portuguesa na base de dados". O Governo recuou nessa proposta disparata - e totalmente desproporcionada entre os potenciais riscos e benefícios -, mas nada nos garante que, como já aconteceu noutros países, os propósitos da base de dados não venham a ser alargados e não estejamos a discutir a universalidade da mesma daqui a uns tempos. Principalmente se continuar o estranhíssimo silêncio sobre o projecto agora aprovado.
ps: para ficar mais claro, na sequência de um comentário a este post, o ponto sobre os marcadores não codificantes foi alterado.